O tema da responsabilidade civil em acidentes de trânsito é um dos mais recorrentes na jurisprudência brasileira. Entre os diversos aspectos discutidos nos tribunais, destaca-se a questão da fuga do condutor do local do acidente e a sua relação com o dano moral indenizável.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmou entendimento no sentido de que o simples fato de o condutor responsável pelo acidente de trânsito ter fugido sem prestar socorro à vítima não configura, por si só, dano moral in re ipsa — ou seja, não gera automaticamente o direito à indenização.
Esse foi o entendimento da 4ª Turma do STJ, no julgamento do Recurso Especial nº 1.512.001/SP, de relatoria do Ministro Antonio Carlos Ferreira, em 27/04/2021 (Informativo 694).
1. O dever de socorro e a responsabilidade civil
A omissão de socorro em acidentes de trânsito é, sem dúvida, uma conduta reprovável, tanto sob o ponto de vista ético quanto jurídico.
O Código de Trânsito Brasileiro (CTB), em seu art. 304, tipifica a omissão de socorro como crime, quando o condutor, envolvido no acidente, deixa de prestar assistência à vítima, podendo fazê-lo sem risco pessoal.
No entanto, a responsabilidade civil — especialmente a indenização por danos morais — exige mais do que a simples constatação de uma conduta ilícita.
É necessário comprovar a existência do dano e o nexo causal entre a omissão e o sofrimento psíquico ou emocional da vítima.
2. O que é o dano moral in re ipsa
A expressão “dano moral in re ipsa” designa aquelas situações em que o dano é presumido, ou seja, decorre automaticamente do próprio ato ilícito, sem necessidade de prova específica.
É o que ocorre, por exemplo, em casos de inscrição indevida em cadastros de inadimplentes ou morte de ente familiar — situações em que o sofrimento é presumido pela experiência comum.
Entretanto, o STJ entende que a simples evasão do condutor do local do acidente não se enquadra nessa hipótese, pois nem sempre essa conduta causa efetivo abalo moral.
A fuga pode decorrer de medo, nervosismo, insegurança ou outras circunstâncias que não necessariamente implicam dano à integridade psíquica da vítima.
3. A importância da análise do caso concreto
O julgamento do REsp 1.512.001/SP reforçou a necessidade de o magistrado avaliar as particularidades de cada caso para definir se houve ou não dano moral indenizável.
O tribunal reconheceu que em determinadas situações, a fuga do local do acidente pode sim gerar sofrimento intenso, especialmente quando a vítima fica desamparada, ferida ou em situação de risco.
Por outro lado, há hipóteses em que a evasão do condutor não causa abalo psicológico relevante, sobretudo se o socorro foi prestado por terceiros, ou se a colisão foi leve e não resultou em lesões.
Assim, o dano moral não é presumido nesses casos: deve ser comprovado por meio de elementos concretos, como atestados médicos, depoimentos, perícias ou outros indícios do sofrimento experimentado.
4. A evolução da jurisprudência e a segurança jurídica
O entendimento consolidado pelo STJ representa um avanço na aplicação equilibrada dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no campo da responsabilidade civil.
A Corte Superior busca evitar que situações de mero aborrecimento — embora reprováveis — sejam elevadas à categoria de dano moral indenizável, o que poderia banalizar o instituto e comprometer a coerência das decisões judiciais.
Dessa forma, o precedente contribui para a uniformização da jurisprudência e para a segurança jurídica, delimitando claramente os casos em que a omissão de socorro pode — ou não — gerar dever de indenizar.
5. Conclusão
A fuga do local do acidente, sem o devido socorro à vítima, não configura automaticamente dano moral in re ipsa.
Para que haja indenização, é indispensável a comprovação efetiva do sofrimento moral ou psicológico decorrente da conduta do agente.
O reconhecimento dessa necessidade de prova reforça o compromisso do Poder Judiciário com a seriedade e a justa aplicação da responsabilidade civil, distinguindo os verdadeiros danos morais dos simples aborrecimentos da vida cotidiana.
Referências:
- BRASIL. Código de Trânsito Brasileiro, art. 304.
- BRASIL. Código Civil, arts. 186 e 927.
- STJ. 4ª Turma. Recurso Especial nº 1.512.001/SP, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 27/04/2021 (Informativo 694).