VOCÊ SABE O QUE É REPRESSÃO PROCESSUAL?
Há muito se fala em sobrecarga de trabalho do Poder Judiciário: Alfredo Buzaid já indicava o nascedouro da ulteriormente chamada “crise do Supremo”, em estatísticas datadas do prelúdio do século passado. Várias iniciativas foram dirigidas para restringir o numerário de recursos e processos: sempre na compreensão do problema como um assunto pertencente à seara da política judiciária e da celeridade processual.
Múltiplos exemplos podem ser mencionados nesse sentido, destaco aqui apenas um punhado representativo daqueles anteriores à Constituição Federal de 1988: [a] a EC nº 3/1926 já limitava a competência do STF; [b] a CF/1934 previa a criação da segunda instância da Justiça Federal, que era então exercida pelo STF; [c] a CF/1937 extinguiu a Justiça Federal, transferindo a competência à justiça dos Estados; [d] a CF/1946 restabeleceu a Justiça Federal de segunda instância, instituindo o Tribunal Federal de Recursos (TRF), na expectativa de limitação do acesso ao STF; [e] em 1963, o STF, por meio alteração do seu regimento interno, auto-institui seu poder de editar súmulas (que, à época, ainda eram meramente persuasivas/não-vinculantes) e, no mesmo ano, edita 438 enunciados, muitos dos quais restringiam o cabimento do recurso extraordinário, merecendo destaque o de nº 400, segundo o qual: “Decisão que deu razoável interpretação à lei, ainda que não seja a melhor, não autoriza recurso extraordinário”; [f] no ano de 1985, pela emenda regimental nº 2/STF, institui-se a chamada “arguição de relevância”, que estabelecia discricionariedade do STF para conhecer (ou não) do recursos extraordinários relacionados às questões infraconstitucionais.
Desde a Constituição Federal de 1988 até o período atual, como se sabe, vários outros instrumentos foram implementados: desde a criação do Superior Tribunal de Justiça até o sistema de decisões vinculativas (art. 927 do Novo CPC) — passando por vários outros mecanismos do fenômeno que hoje se denomina “objetivação processual”, como as decisões com efeitos erga omnes, as súmulas vinculantes, a repercussão geral, o julgamento de recursos repetitivos etc.
A questão é que o responsável pela superlotação do sistema jurisdicional é o próprio Estado brasileiro: cerca de 95% dos 110 milhões de processos em curso no país envolvem ou o próprio Estado (em seus diversos níveis federal, estadual e municipal e respectivas autarquias e fundações) ou atividades por ele regulamentadas e fiscalizadas (mormente os bancos e a telefonia), conforme expõe o próprio Conselho Nacional de Justiça. Fora o fato de que procuradores e advogados públicos são obrigados a recorrer de quase todas as decisões e que, enquanto litigante, o Estado goza de inúmeras prerrogativas/vantagens (prazos em dobro, precatórios, intimações pessoais…). Mesmo assim, é comum ouvir sobre a necessidade de diminuição da quantidade de recursos.
Eis o fato: repressão processual é a terceira onda de violações do Estado brasileiro. Primeiro ele deixa de estabelecer um regramento adequado (pelo excesso/desordem da legislação e com patamares ininteligíveis de racionalidade). Depois, presta serviços públicos ineficientes (desde políticas públicas até a fiscalização das atividades regulamentadas), violando diretamente e fomentando, por terceiros, a violação em massa de direitos. Por fim, na terceira onda, nega-se a prestar a atividade jurisdicional: porque, afinal, já estamos cheios de trabalho aqui no Judiciário e sua causa de divórcio ou de necessidade de intervenção cirúrgica ou de vida ou morte NÃO É IMPORTANTE, já que ela só interessa a você.
A repressão processual é a impossibilidade de exigir direitos tais como eles são: você precisa travestir seus interesses como “gerais”, fazendo com que eles ganhem “ares de importância”, como se o fato de ter um direito violado não fosse suficiente para litigar e merecer a prestação jurisdicional.
Vamos esclarecer: se o meu direito constitucional à saúde/vida é violado pelo SUS, porque não consigo que seja realizada uma cirurgia cardíaca de urgência, o fato de o STF dizer que não pode conhecer o recurso extraordinário desta causa, porque ela só interessa a mim, consiste em repressão do meu próprio direito à saúde/vida. É negar o Direito! Porque, como dizia Ihering “meu direito é o Direito”.
O fato de permitirmos, na condição de comunidade jurídica, que o STF escolha ARBITRARIAMENTE os recursos que irá ou não julgar (e isso já se espraiou para o TST e, em breve, chegará ao STJ) é uma afronta direta à Constituição e ao nosso dever de militar pelo Direito! Repressão processual é a negação do direito mais básico do jurisdicionado: o de litigar e buscar aquilo que lhe é devido.
Por isso afirmo que a EC 45/2004 é INCONSTITUCIONAL em todos os mecanismos de restrição à jurisdição do STF (repercussão geral, súmula vinculante…) além das demais ferramentas de repressão processual instituídos a partir da conveniência do Poder Judiciário (julgamento de causas repetitivas, metas do CNJ, transcendência…).
Toda essa nomenclatura pomposa é só um engodo para dizer isto: “dane-se o seu direito, eu, Judiciário, julgo aquilo que eu bem entender”. Isto é: “dane-se a democracia”.
Querem diminuir o número de recursos e processos: obriguem o Estado brasileiro a ser eficiente!
Reprimir processualmente os direitos, limitando o acesso à jurisdição só piora e perpetua o problema.
Sempre escutei está alegação do Estado como primeiro litigante ao lado dos bancos e empresas de telefonia. Da experiência que vai se acumulando na advocacia fazendária, proponho uma hipótese: não seriam estatisticamente falando o número de relações jurídicas travadas o dado elementar que explica a posição, e não exatamente os defeitos de serviço? Para avaliar este, deve-se consultar os dados sobre condenações em relação às absolvições.